Certo navegador disse que em casa
mostramos nossos piores defeitos. Por isso, presume-se que devemos viajar
sempre para amenizar nossos defeitos, praticar a tolerância e a paciência.
Tolerância para com as pessoas mal educadas que gritam nos corredores do hotel
e acordam todo mundo que poderia dormir um pouco mais. Com aqueles que fazem
algazarra na piscina do hotel quando o que queremos é só relaxar ao sol, dar um
mergulho e ficar em completa letargia. Paciência nas rodoviárias ou aeroportos
com os atrasos. Paciência nas estradas durante congestionamentos e tantos “pare
e siga”. Eu entendo o grande navegador. Em casa, temos a liberdade e a
privacidade necessária para mostrarmos quem realmente somos, sem maquiagem,
para expor nossas piores facetas, a sombra, conforme o pensamento Junguiano,
nossa revolta, nossas mágoas e nossas angústias. Porque em casa temos de
acordar cedo demais para ir trabalhar, não antes de cuidar dos pets, preparar o
lanche do dia, viajar durante 40 minutos e passar o dia todo suportando pessoas
com personalidades diversas e difíceis com quem somos obrigados a conviver boa
parte do dia e que entram em choque com a nossa própria personalidade. E depois
de um dia inteiro de trabalho, trancafiados em uma sala quadrada, de muito
calor ou frio, porque em todo local de trabalho há uma discordância tradicional
em relação à potência do ar condicionado, vamos embora para casa. Passamos no supermercado, nos assustamos com os
preços, enfrentamos a fila para comprar carne e depois a fila no caixa. Se
estamos na fila de caixa rápido com 10 volumes e vemos alguém na frente com 20,
temos de fingir tolerância ao próximo, fingir que não estamos vendo e que não
somos cidadãos com direitos e deveres, fingir como a funcionária do caixa, tudo
para evitar um bate-boca ou uma violência maior. E quando chegamos a nossa
casa, temos de limpar os excrementos dos pets, trocar água e abastecer os
portes de ração, e olhamos a bagunça e desarrumação na sala, que idealizamos
como sala de revista de decoração. E vemos que o cesto de roupas sujas está
cheio e que o chão está coberto de cabelos perdidos devido ao estresse, que a
pia está lotada de louça suja e o fogão sujo de gordura e seu estômago reclama
de fome. E depois de deixar tudo em ordem, catar as roupas depositadas em
locais que não são cabides e ainda encontrar força para levar o cachorro para
caminhar e aproveitar para também gastar umas calorias, pensando em ficar com a
barriga “tanquinho” para o verão. E aí, depois de um banho e pensar no que vai
comer, lembrar que há uma pilha de roupa para passar e o calor está
insuportável para enfrentar um ferro. E antes do sono reparador, que já
sabemos, não vai ser o bastante, caçar e eliminar os mosquitos sugadores do que
restou do nosso sangue. Depois de tudo isso (e olha que nem citei filhos e
marido) é quase impossível ser alguém sem defeitos.
Sim,
vamos viajar. E fazer de conta que essa vida não nos pertence. Que somos reis e
rainhas, sermos servidos, desfrutar apenas. Entrar em um patamar de lerdeza e
em um simpósio do NADA. Apenas não fazer nada e esquecer a vida que temos em
casa, igual a de milhões de pessoas, geralmente mulheres. Façamos de conta que
somos mais que especiais. Conheçamos outras pessoas, outras paisagens,
contemplemos o mundo, as belezas da natureza, o tudo, fazendo nada. E quando
esses momentos acabam é como viver a vida da Gata Borralheira, correr para a
dura realidade... a nossa casa.
Por Denise Constantino
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